IRPJ/CSLL – ÁGIO INTERNO – AMORTIZAÇÃO – EMPRESA-VEÍCULO

Pela primeira vez, STJ julga o mérito de caso sobre ágio interno, com uso de empresa-veículo
por Enrico de Carpena Ferreira Correa de Barros publicado em 25/10/2023

Em 05/09/2023, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, de maneira inédita, a respeito do mérito de caso sobre a amortização de ágio apurado em combinação de negócios envolvendo partes relacionadas (ágio interno) e com a utilização de empresa-veículo. Os fatos que motivaram a propositura da ação ocorreram ainda na vigência da Lei nº 9.532, de 10/12/1997 – antes, portanto, da Lei nº 12.973, de 13/05/2014, que trouxe nova disciplina à matéria

Trata-se do julgamento do Recurso Especial nº 2.026.473/SC, conhecido como “Caso Cremer”, de Relatoria do Ministro Gurgel de Faria, em que se validou o aproveitamento fiscal do chamado “ágio interno” e com uso de empresa-veículo, desde que respeitadas as condições legais previstas nos arts. 7º e 8º da Lei nº 9.532/97. Isso é, o julgamento foi favorável à tese dos contribuintes, representando um relevante marco jurisprudencial que, como se verá, afasta entendimentos comumente adotados pelo Fisco em autuações que envolvem ágio em reorganizações societárias.

Para bem compreender a relevância e o ineditismo deste julgamento, é importante mencionar alguns elementos fáticos da reorganização societária do Caso Cremer, para, então, tratar dos principais pontos abordados no julgado.

Discute-se no caso os efeitos fiscais da aquisição de sociedade anônima nacional de capital aberto (CREMER S.A.) por holding formada para tal fim (CREMERPAR), composta por sócios brasileiros e estrangeiros. Com o intuito de viabilizar a referida operação, o grupo econômico internacional (MLGP) – que pretendia adquirir o controle da CREMER S.A. – constituiu a holding nacional CREMERPAR (a chamada “empresa-veículo”), o que possibilitou o aproveitamento fiscal do ágio. O valor total da aquisição da CREMER S.A. pela CREMERPAR excedeu o patrimônio líquido da empresa adquirida (que era negativo), gerando o referido ágio.

De acordo com a redação original do art. 20, II, do Decreto-Lei nº 1.598/77, o ágio corresponde à diferença positiva entre o valor pago pelo adquirente (custo de aquisição) e o valor de avaliação do patrimônio líquido da adquirida (que, no caso, era negativo). Para fins fiscais, nos termos do art. 7º, III, da Lei nº 9.532/97, o ágio assim apurado podia ser amortizado das bases de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) nos “cinco anos-calendários subseqüentes à incorporação, fusão ou cisão, à razão de 1/60 (um sessenta avos), no mínimo, para cada mês do período de apuração” – isso é, no percentual de 20% ao ano, ao longo de cinco anos.

Após julgamento desfavorável no âmbito administrativo, o caso foi levado ao Judiciário, que, em decisões de primeiro e segundo graus, reconheceu que, na vigência da Lei nº 9.532/97, não havia qualquer óbice legal à apuração de ágio interno – sobretudo, se inexiste simulação ou ato ilícito na operação.

Por sua vez, no julgamento do Recurso Especial interposto pelo Fisco, o STJ adotou fundamentos que consolidam critérios claros para a amortização do ágio em operações de aquisição de participações societárias, dentre os quais destacamos os cinco pontos abaixo:

  • Ágio Interno: admitiu-se a possibilidade de amortização do ágio gerado entre partes relacionadas (“ágio interno”), não se podendo pressupor a priori a existência de simulação nesses casos. De acordo com a decisão do STJ, a vedação à amortização do ágio gerado entre partes dependentes apenas sobreveio com os arts. 20, 22 e 25, do Decreto-Lei nº 1.598, de 26/12/1977, introduzidos pelo art. 1º da Lei nº 12.973/14, de modo que, inexistindo previsão prévia nesse sentido na Lei nº 9.532/97, não haveria de se falar em vedação à amortização de ágio interno;
  • Tese do Real Adquirente: afastou-se a aplicação do conceito de “real adquirente” ou “real investidor”, comumente utilizado pelo Fisco, segundo o qual se deve apurar quem efetivamente forneceu os recursos financeiros ou ofertou garantia para a aquisição do investimento – no caso em concreto, a empresa estrangeira, e não a empresa-veículo no Brasil, adquirente jurídica do investimento. Ocorre que, de acordo com a decisão, a tese do “real adquirente” carece de base legal;
  • Empresa-veículo: em consequência do ponto (2) acima, reconheceu-se a possibilidade e a legitimidade da utilização da chamada “empresa-veículo”, pois essa pessoa jurídica interposta não estaria necessariamente desprovida de efetivo propósito negocial. Mais do que isso, o ordenamento jurídico brasileiro incentivaria a utilização de holdings patrimoniais – sobretudo em operações com investidores estrangeiros, nas quais o uso das ditas empresas-veículo constitui pressuposto para a amortização do ágio. É o que se observa, por exemplo, do art. 2º, § 3º, da Lei nº 6.404/76. Ou seja, mais que uma faculdade, a criação da CREMERPAR se constituiu numa necessidade do investidor estrangeiro, para obter acesso isonômico ao tratamento tributário dispensável ao capital nacional. A constituição de empresa-veículo viabiliza a atuação do investidor estrangeiro no mercado brasileiro, o que, por si só, configura o propósito negocial dessas operações, inexistindo qualquer vedação a essa prática;
  • Propósito Negocial: na linha do que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no julgamento da ADI nº 2446, o STJ reconheceu que a plena eficácia do art. 116, parágrafo único, do CTN (a chamada “norma geral antielisiva”) depende de regulamentação em lei ordinária, prevalecendo a previsão do art. 149, VII, do CTN, no sentido de que o Fisco apenas pode requalificar negócios jurídicos ilícitos/simulados. No que diz respeito ao ágio interno e à utilização de empresa-veículo, não há de se falar, necessariamente, em artificialidade, cabendo ao Fisco comprovar, no caso concreto, eventual irregularidade – o que não se verificou no caso julgado pelo STJ; e
  • Requisitos Legais para a Amortização do Ágio: assim, o presente julgamento deu efetividade às previsões dos arts. 7º e 8º da Lei nº 9.532/97, reconhecendo que os requisitos legais para a amortização do ágio envolvem apenas: (i) a aquisição de participação societária por custo superior ao patrimônio líquido da adquirida; (ii) que o ágio esteja fundamentado em expectativa de rentabilidade futura da sociedade adquirida, devidamente demonstrado; (iii) que haja efetivamente reorganização societária, com a incorporação, fusão ou cisão, envolvendo, pois, sacrifício econômico real; e (iv) que seja observado o percentual de 20% ao ano para fins da dedução fiscal, ao longo dos cinco anos subsequentes à incorporação, fusão ou cisão. 

Apesar de, neste julgamento, o STJ ter definido importantes balizas e critérios para a amortização do ágio das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, algumas observações adicionais podem ser feitas sobre os possíveis impactos dessa decisão.

Com efeito, este é o entendimento expresso por apenas uma das Turmas de julgamento do STJ, inexistindo, até o momento, manifestação da Segunda Turma do STJ a respeito da matéria. Ademais, apesar de que o Judiciário deve, em regra, uniformizar sua jurisprudência, tecnicamente esta decisão vale apenas para as partes envolvidas, visto que o julgamento não ocorreu sob o rito dos recursos repetitivos. Não há, portanto, observância obrigatória, aplicável a todo e qualquer caso (eficácia erga omnes).

Por essa mesma razão, a decisão não vincula os órgãos de julgamento no âmbito administrativo. Isso é, ainda pode persistir a indefinição na jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) – situação essa que é agravada pelas constantes alterações do critério de desempate dos julgamentos. Notadamente, a maioria dos casos julgados pelo CARF que envolvem ágio foram desempatados pelo chamado “voto de qualidade”, de acordo com o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235/1972, ou pelo “desempate pró-contribuinte”, previsto no revogado art. 19-E da Lei n° 10.522/2002.

De todo modo, presentes essas ressalvas, o presente julgamento do STJ pode estabelecer um novo paradigma aos julgamentos futuros: para a desconstituição da amortização do ágio, por parte das autoridades fiscais, não basta simplesmente que as partes sejam dependentes (ágio interno) ou que seja utilizada empresa-veículo para a aquisição. Cabe às autoridades administrativas apurar, de acordo com os elementos probatórios do caso concreto, se há indicativos de simulação ou de práticas ilícitas. Caso contrário, o aproveitamento fiscal do ágio é considerado legítimo, se observadas as condições legais previstas nos arts. 7º e 8º da Lei nº 9.532/97.

Autor:

Enrico de Carpena Ferreira Correa de Barros (enrico@charneski.com.br)

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