CARF – PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL – LEI Nº 14.689/2023
Lei n° 14.689/2023 é sancionada e critério de desempate do CARF é novamente alterado
por Heron Charneski e Enrico Carpena Ferreira Correa de Barros publicado em 27/09/2023A novela do critério de desempate nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) ganha um novo episódio: a Lei Ordinária n° 14.689/2023, oriunda do Projeto de Lei (PL) nº 2.384/2023, foi sancionada, com vetos, alterando, uma vez mais, a sistemática de julgamentos no âmbito administrativo federal. Reaviva-se, assim, o debate acerca da composição paritária do CARF.
Historicamente, as turmas de julgamento do CARF têm o mesmo número de conselheiros nomeados pelas confederações representativas de categorias econômicas e centrais sindicais (contribuintes) e pela Receita Federal do Brasil (Fisco). Pode-se afirmar que sempre existiu uma controvérsia sobre qual deveria ser o critério de desempate, porém, nos últimos anos, essa contenda ganhou um contorno político, com fundamentos eminentemente arrecadatórios. Essa controvérsia não é, portanto, uma novidade, mas as sucessivas alterações normativas dos últimos anos agravam o cenário de incerteza e insegurança jurídica.
Em outra oportunidade, noticiamos a malsucedida tentativa de alteração do critério de desempate por meio da Medida Provisória (MP) nº 1.160/2023. Naquele caso, a MP não foi convertida em lei no prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias previsto no art. 62, § 3°, da Constituição Federal (CF/88), perdendo, assim, a sua eficácia. Adicionalmente, em 31/07/2023, esgotou-se o prazo de 60 (sessenta) dias previsto no § 11 do art. 62 da CF/88 para o Congresso Nacional disciplinar por decreto legislativo as relações jurídicas impactadas pela MP (vide tramitação da MP nº 1.160/2023). Desse modo, os julgamentos ocorridos na vigência da MP nº 1.160/2023 foram conservados com base nas respectivas regras.
Paralelamente à tramitação da MP nº 1.160/2023, em 05/05/2023, foi apresentado à Câmara dos Deputados o PL n° 2.384/2023, o qual, em 20/09/2023, deu origem à Lei n° 14.689/2023. O PL nº 2.384/2023 reproduz essencialmente as alterações normativas da MP n° 1.160/2023: ambos diplomas normativos revogavam o art. 19-E da Lei n° 10.522/2002 – que previa o critério de desempate pró-contribuinte – e reinstituíam o chamado voto de qualidade, previsto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235/1972. O voto de qualidade confere aos Presidentes das turmas de julgamento do CARF (representantes da Fazenda Nacional) o poder decisório sobre a controvérsia no caso de empate no julgamento.
Além disso, a Lei n° 14.689/23 prevê certas “compensações” aos contribuintes que tiverem decisões desfavoráveis com base no voto de qualidade. Dentre essas inovações, que refletem aspectos positivos deste novo diploma legislativo, destacamos os seguintes pontos:
- Multa e representação fiscal para fins penais: o art. 25, § 9º-A do Decreto nº 70.235/1972 passa a prever o cancelamento de multas e de eventual representação fiscal para fins penais na hipótese de julgamento favorável à Fazenda Pública por voto de qualidade;
- Casos pendentes de julgamento no âmbito judicial: a previsão acima é aplicável, inclusive, aos casos já julgados no CARF e que estivessem pendentes de apreciação de mérito pelo Tribunal Regional Federal (TRF) competente na data de publicação da lei, conforme estabelece o art. 15 da Lei nº 14.689/2023;
- Exoneração de juros e emissão de Certidão de Regularidade Fiscal: já o art. 25-A do referido Decreto prevê a possibilidade de exoneração de juros de mora nos casos julgados com base no voto de qualidade, “desde que haja a efetiva manifestação para pagamento” do valor discutido no prazo de 90 (noventa) dias. Nesse prazo, não serão impostos óbices à emissão de certidão de regularidade fiscal;
- Uso de prejuízo fiscal e precatórios: o pagamento do débito principal remanescente poderá ser realizado em até 12 (doze) parcelas mensais e sucessivas, admitindo-se, ainda, para fins de quitação ou amortização do débito remanescente, a utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), bem como de precatórios;
- Transação tributária: nos termos do art. 3º da Lei nº 14.689/2023, os débitos também “poderão ser objeto de proposta de acordo de transação tributária específica, de iniciativa do sujeito passivo”. O parágrafo único desse artigo previa que a transação do caput, a ser regulamentada pelo Procurador-Geral da Fazenda Nacional, conteria “condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos” e consideraria “o prognóstico do risco judicial de cada processo”; todavia, essa disposição foi vetada, em razão de suposta violação ao princípio da isonomia (vide razões de veto);
- Garantias em execuções fiscais: conforme o art. 4º da Lei nº 14.689/2023, nos casos julgados pelo voto de qualidade, os contribuintes com capacidade de pagamento não precisarão apresentar garantia para discutir judicialmente os créditos tributários. Para fins de definição da “capacidade de pagamento”, serão considerados certos documentos definidos no dispositivo, bem como o patrimônio líquido do sujeito passivo. Por outro lado, quando exigida a garantia, não será admitida a sua execução “até o trânsito em julgado da medida judicial, ressalvados os casos de alienação antecipada previstos na legislação”;
Casos impactados pela MP n° 1.160/2023: todas as exclusões e benefícios elencados acima aplicam-se também para os casos julgados pelo voto de qualidade durante a vigência da MP nº 1.160/2023, conforme estabelece o art. 16 da Lei nº 14.689/2023;
- Conformidade fiscal: o art. 7° da nova Lei disciplina uma série de medidas tendentes a incentivar a conformidade tributária; contudo, nesse ponto, entendemos que foram vetadas relevantes previsões do texto aprovado pelo Congresso Nacional – dentre elas, os dispositivos que previam (1) a disponibilização pela Receita Federal de comunicações prévias à abertura de procedimento de fiscalização; e (2) a possibilidade de redução de multa de ofício em 1/3 (um terço) e de multa de mora em pelo menos 50% (cinquenta por cento) (vide dispositivos vetados dos arts. 6º e 7º da Lei); e
- Multa de ofício: o texto aprovado pelo Congresso Nacional também previa a relevação da multa de ofício de 75%, quando há “histórico de conformidade” do contribuinte ou responsável tributário; e previa a sua redução em 1/3 (um terço) quando constatado “erro escusável”, comportamento que “demonstre cautela” ou divergência na interpretação da legislação. Entretanto, tais previsões foram igualmente vetadas (vide razões de veto). Também foi vetado o art. 14 do Projeto de Lei, que definia o cancelamento do montante da multa qualificada que excede 100% (cem por cento) do valor do crédito tributário.
Em resumo, apesar de a Lei nº 14.689/2023 reinstituir o critério de desempate por voto de qualidade previsto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235/1972, o novo diploma normativo prevê uma série de medidas que reduzem ou cancelam encargos, multas e juros incidentes sobre os débitos tributários originados em julgamentos desempatados pelo voto de qualidade.
Além disso, buscando garantir maior segurança jurídica, a lei regulou relações jurídicas que seriam negativamente impactadas se as previsões normativas apenas regulassem casos futuros – como é o caso (i) dos processos pendentes de apreciação de mérito pelo TRF competente na data de publicação da lei e (ii) dos processos administrativos julgados na vigência da MP n° 1.160/2023.
É importante mencionar, ainda, que – mesmo com edição da Lei nº 14.689/2023 – permanece a incerteza em relação aos processos decididos com base no desempate pró-contribuinte. Isso porque ainda aguardamos o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s) n° 6.399, 6.403 e 6.415, nas quais o STF decidirá pela constitucionalidade (ou não) do dispositivo normativo que inseriu o art. 19-E na Lei nº 10.522/2002. O julgamento dessas ADI’s foi suspenso em 24/03/2023, após pedido de vista pelo Ministro Nunes Marques.
Em razão desse oscilante cenário normativo, o que preocupa são os efeitos negativos das mudanças constantes e iminentes. Notadamente, o cenário de insegurança jurídica na esfera administrativa-tributária não se limita aos casos julgados pelo CARF na vigência da MP n° 1.160/2023 ou do art. 19-E da Lei n° 10.522/2002: a maior incerteza que experienciamos refere-se às possíveis metamorfoses que o processo administrativo poderá sofrer no futuro.
Adicionalmente, a Lei nº 14.689/2023 contém previsões que não tratam especificamente dos casos impactos pela reinstituição do voto de qualidade. Por exemplo, nesses dispositivos, a nova Lei: (i) garante ao procurador do sujeito passivo o direito à realização de sustentação oral em primeira instância administrativa; (ii) define que os órgãos julgadores de primeira e segunda instâncias administrativas deverão observar as Súmulas do CARF; e (iii) prevê mudanças nos critérios para imposição de multas. Especificamente nesse último caso, destacamos que a multa agravada de 150% (cento e cinquenta por cento) fica restrita aos casos em que se identifica a reincidência do sujeito passivo, conforme preveem os incisos VI e VII do art. 44 da Lei nº 9.430/1996.
Por fim, quanto aos vetos da Presidência da República ao texto de conversão da Lei nº 14.689/2023, o Congresso Nacional ainda terá a oportunidade de apreciá-los e, caso rejeitados, retomar a redação original.
Autores:
Heron Charneski (heron@charneski.com.br)
Enrico de Carpena Ferreira Correa de Barros (enrico@charneski.com.br)