IRPJ/CSLL – ÁGIO INTERNO – EMPRESA VEÍCULO
2ª Turma do STJ nega aproveitamento de ágio interno em razão de “abuso do direito de ágio”
por Jorge Ricardo da Silva Júnior publicado em 13/11/2024Em 05/11/2024, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) enfrentou pela primeira vez o tema da amortização do ágio envolvendo partes vinculadas (denominado “ágio interno”) em um caso de planejamento tributário envolvendo empresa-veículo. Os fatos analisados na decisão são anteriores à Lei nº 12.973/14, que vedou expressamente o aproveitamento do ágio interno para fins fiscais.
Trata-se do REsp nº 2.152.642, de Relatoria do Ministro Francisco Falcão, em que a Segunda Turma do STJ entendeu pela impossibilidade de amortização do ágio interno mesmo em período anterior à Lei nº 12.973/14 (que expressamente proíbe tal aproveitamento), em razão de “abuso do direito do ágio” realizado por meio de planejamento tributário abusivo.
Para melhor compreensão do julgamento, a seguir será apresentado o contexto fático do caso para, então, analisar os argumentos das partes e o mérito da decisão.
Contexto fático
No caso, conforme fatos relatados pelo acórdão do TRF-2, em 2007 foi constituída uma nova empresa (Sodam Empreendimentos e Participações S/A – “Sodam”), a qual incorporou as ações da contribuinte Viação Joana D´arc S.A. (“Viação”). Em função das ações da Viação terem sido incorporadas a valor de mercado, o patrimônio da Sodam foi composto não somente por seu capital social, mas também pela reserva de ágio gerada pela diferença entre o valor patrimonial das ações e o seu valor de mercado.
Após, ainda em 2007, a Sodam foi incorporada pela Viação, com a apuração de ágio por expectativa de rentabilidade futura, conforme Laudo de Avaliação, de forma que a incorporadora iniciou a amortização do ágio registrado na incorporada, nos termos dos artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532/97, e do artigo 20, § 2º, “b”, do Decreto-Lei nº 1.598/77.
Conforme estabelecia a redação então vigente do art. 20, II, do Decreto-Lei nº 1.598/77, o ágio correspondia à diferença positiva entre o valor pago pelo adquirente (custo de aquisição) e o valor de avaliação do patrimônio líquido da adquirida.
Nesse contexto, o art. 7º, III, da Lei 9.532/97 estabelece que o ágio cujo fundamento seja a expectativa de rentabilidade futura (§2, “b”, do art. 20 do Decreto-Lei nº 1.598/77) poderá ser amortizado da base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), à razão de 1/60 (um sessenta avos), no mínimo, para cada período de apuração.
O art. 8º da Lei, por sua vez, dispõe que o estabelecido pelo art. 7º se aplica quando “a empresa incorporada, fusionada ou cindida, for aquela que detinha a propriedade da participação societária. Ou seja, a norma se aplica para os casos da chamada “incorporação reversa”.
Com base nesses dispositivos, a Viação., empresa incorporadora, se utilizou do ágio gerado na operação para a amortização da base de cálculo do IRPJ e da CSLL no lucro real, o que acabou por gerar a autuação fiscal posteriormente, com a glosa da dedução.
Argumentos da Fazenda Nacional
De um lado, a Fazenda Nacional pontuou que o contribuinte realizou a operação de forma artificial, com o uso da incorporação reversa. Ou seja, a Sodam foi criada e utilizada somente como empresa veículo para transporte do ágio gerado artificialmente, através de incorporação reversa que não envolveu terceiros (partes independentes) e também não demandou efetivo desembolso financeiro.
Além disso, a Fazenda Nacional acrescentou que a empresa veículo não efetuou nenhum ato comercial, tendo sido constituída somente para incorporar e posteriormente ser incorporada pela apelante, gerando um “ágio passível de amortização”.
Argumentos do contribuinte
Por outro lado, o contribuinte defendeu, em suma, que a Sodam não era mera empresa-veículo e que o aproveitamento do ágio para fins fiscais seria permitido pela legislação, razão pela qual diversos contribuintes se valiam desse tipo de reestruturação societária.
Ademais, não haveria vedação ao aproveitamento do ágio interno, visto que a vedação legal só veio a ser introduzida no ordenamento jurídico pela Lei 12.973/14. Além disso, defendeu o afastamento da multa qualificada e a necessidade de manutenção do entendimento do TRF-2 para preservação da segurança jurídica.
A decisão do STJ
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que o Ministro Relator Francisco Falcão partiu da premissa estabelecida na origem de que a “operação societária promovida pelo contribuinte de fato teve por objeto a criação de pessoa jurídica sem correspondência econômica no mundo real, apenas para servir de transmissora de ágio meramente contábil no contexto de incorporação reversa, viabilizando a posterior dedução das bases tributáveis.”
Portanto, conforme referiu o Ministro, não haveria necessidade de revolvimento à matéria fático-probatória, de forma que a discussão seria verificar, se no ordenamento jurídico vigente à época dos fatos, em especial os art. 7º e 8º da Lei nº 9.532/97, permitiria que organizações societárias criassem pessoas jurídicas apenas com a finalidade de produzir ágio artificial destinado a reduzir as bases tributáveis do IRPJ e da CSLL.
Nessa linha, após trazer a disciplina do ágio posta no Decreto-Lei nº 1.598/77, o voto se revolve à disciplina da Lei nº 9.532/97. Nesse sentido, é citada a exposição de motivos da Medida Provisória nº 1.602/97, que deu origem à referida Lei nº 9.532/97. Conforme a referida exposição de motivos, o propósito da Lei seria evitar as situações envolvendo planejamentos tributários abusivos, restringindo o tratamento tributário de ágio às hipóteses de casos reais:
“Atualmente, pela inexistência de regulamentação legal relativa a esse assunto, diversas empresas, utilizando dos já referidos “planejamentos tributários”, vem utilizando o expediente de adquirir empresas deficitárias, pagando ágio pela participação, com a finalidade única de gerar ganhos de natureza tributária mediante o expediente, nada ortodoxo, de incorporação da empresa lucrativa pela deficitária.
Com as normas previstas no Projeto, esses procedimentos não deixarão de acontecer, mas, com certeza, ficarão restritos às hipóteses de casos reais, tendo em vista o desaparecimento de toda vantagem de natureza fiscal que possa incentivar a sua adoção exclusivamente por esse motivo”
Nessa linha, o Ministro afirmou que os arts. 7 e 8º da Lei nº 9.532/97 teriam sido introduzidos no ordenamento jurídico com o fim específico de coibir a prática de planejamentos tributários abusivos em que empresas superavitárias adquiriram com ágio empresas deficitárias para serem em seguida incorporadas por ela, sem qualquer propósito negocial que não fosse a economia tributária.
Após analisar os arts. 7º e 8º da referida Lei em conjunto com a disciplina do art. 20 do Decreto-Lei nº 1.598, entendeu o Ministro Relator que toda a lógica de amortização do ágio conduz à ideia de que tais normas buscavam regular operações societárias usuais, em que a dinâmica do mercado promovia um regime de circulação do capital e de potencialização de resultados nos diversos segmentos econômicos.
Com base nessa linha argumentativa, não se poderia conceber que o ordenamento jurídico tolere a existência de sociedades empresárias não direcionadas à prática econômica, ou seja, desprovidas de qualquer atividade empresarial. Ademais, conforme ressaltou o Ministro, isso não significa ignorar a liberdade de contratar e de auto-organização, mas sim de coibir o denominado “abuso de exercício de direitos”
Diante disso, concluiu o Ministro que, no caso, “o abuso de direito materializado na amortização de ágio gerado em operações internas, sem qualquer propósito negocial, desrespeitou o ordenamento jurídico vigente, ensejando a neutralização dos efeitos do ato abusivo pela autoridade fiscal”. Ou seja, houve “abuso do direito de ágio” pelo contribuinte nesse caso.
O julgamento foi unânime pelo provimento do Recurso da Fazenda Nacional.
No entanto, é importante ressaltar que a Primeira Turma do STJ, ao analisar o tema do ágio interno com a utilização de empresa-veículo chegou a conclusão diversa no julgamento do REsp n º Recurso Especial nº 2.026.473/SC, conhecido como “Caso Cremer” (conferir, nesse Portal, link). Cabe ressaltar que naquela oportunidade a Primeira Turma afirmou que não se pode presumir artificialidade na utilização do ágio interno, cabendo ao Fisco comprovar, no caso concreto, eventual irregularidade.
No caso agora julgado pela Segunda Turma, conforme se extrai do acórdão, o Relator entendeu haver artificialidade na operação em razão do contexto fático delimitado em primeira e segunda instâncias, o que justificaria o entendimento desfavorável ao contribuinte.
É importante salientar que a discussão envolvendo amortização de ágio interno no período anterior à Lei nº 12.973/14 não pode ter conclusões apriorísticas, no sentido de que não se pode utilizar o ágio derivado de operações com partes relacionadas. É necessário que se analise o caso concreto para verificação ou não de vícios e artificialidades. E é justamente nesse exame que podem surgir divergências, já que o conceito de simulação, de abuso de direito ou mesmo de “artificialidades” para fins tributários nem sempre é claro e acaba dependendo do julgador.
Por fim, há grande chance de que sejam opostos Embargos de Divergência dessa decisão, tendo em vista o entendimento da Primeira Turma no “Caso Cremer”, o que poderá levar o tema para exame da Primeira Seção do STJ.